Diario de uma caminhante (El camino a Santiago de Compostela) - Setembro 2016



Dia zero - Viagem de Lisboa ao Ponto de Partida, Vigo (23/09/2016)


Eram 10:30 de uma manhã solarenga. A motivação desta viagem especial desafiava-me a ir pela primeira vez a pé, de casa para o aeroporto. Se imaginasse de antemão que iria ser mimada com o meu gelado favorito da Hagen Das, não teria esperado até ao último minuto para estrear-me na ponte aérea Lisboa-Porto da Tap. Recomendo desde já, pois para além do facto de não se pagar muito mais do que nas alternativas comboio e autocarro, pode chegar-se com a mesma antecedência normal requerida para estas últimas, pois a burocracia é infinitamente inferior à dos voos normais. Há um balcão de checkin e um sistema de RX específicos para a ponte aérea. Diga-se que se pode chegar ao aeroporto 30 minutos antes do voo, sendo um luxo incalculável.


Um dos senões de não planear viagens com a antecedência esperada para um humano formatado, foi não ter coincidido o voo com o meu primo piloto, que também faz a ponte aérea.


Chegando ao Porto, a eficácia repete-se. Em menos de 10 minutos estava no exterior do aeroporto, junto à paragem do autocarro da Autna que me levaria para Vigo, 45 minutos depois.


Pelas 16 e picos, chegava à estação de autocarros de Vigo. Quando perguntei ao simpático senhor das informações onde ficava a rua do meu hotel, respondeu primeiro que não estava longe, mas logo contradisse com um "não está assim tão perto" quando se apercebeu que eu iria a pé. Afinal eram apenas 25 minutos, que se fizeram sem saber ler nem escrever.


Vigo recebeu-me com um sol fortíssimo, para quem esperava um tempo mais apropriado ao outono que havia começado no dia anterior.

Cheguei ao hotel, pousei a mochila e saí a explorar. A mochila trouxe cerca de 4-5kg. Duas mudas de roupa, uma camisola de manga comprida que fez a Patagónia há 4 anos atrás, produtos de higiene compactados em 600gramas, um saco-cama, 4 molas para pendurar a roupa lavada na mochila, durante a caminhada, e umas havaianas. À cintura, trouxe um polar que fez os Glaciares da Ilha Sul da Nova Zelândia há 6 anos atrás. Ao pescoço, trouxe o amuleto: o colar recebido da tribo San, na Namíbia. Nos pés, uns sapatos de caminhada que fizeram vários trilhos na América do Sul e no Sudeste Asiático, durante a minha longa e redonda viagem pelo Globo. Ainda não fiz a prova de fogo e já consegui perceber até à vírgula, a mensagem da senhora que me alertou: "quanto mais caminhamos, mais pesa a mochila".


Assim devemos encarar a nossa vida. Porquê carregar peso? Tiremo-lo dos ombros, isso sim!

Apesar da fotografia ser uma paixão inequívoca, deixei a máquina em casa. Pelas mesmas razões de desprendimento. Fotografarei esta viagem com os pés, escreverei com o coração e abraçarei com os olhos.

Visitar Vigo numa sexta-feira só pode resultar numa recepção "comme il fault". Começar por umas ostras na rua das mesmas não é de todo tempo mal gasto. Terminar com um jantar delicioso num restaurante chique a contrastar com a indumentária de caminhante, mas que terá seduzido o atencioso empregado de mesa e, no fim, pagar uns poucos trocados por todo esse mimo, é a legitima cereja no topo do bolo. Recomendo vivamente Casa Marco e o atum vermelho numa cama de rúcula, acompanhado de puré de batata e espinafre preparado de forma exoticamente deliciosa (enquanto escrevo, recebo mensagens do Teco a sugerir ficar cá mais um dia para repetir a dose).


Duas horas antes, na sacristia da catedral, não imaginava que Vigo me trataria tão bem do paladar. Quando toquei, as portas abriram-se para uma sacristia linda e secular. Por momentos pensava que tinha viajado no tempo. Para além do padre que me abriu a porta, estava instalado numa antiquíssima mesa de madeira, um senhor "assustadoramente" parecido com o Papa João Paulo II, com as vestes de um Bispo, escrevinhando algo que parecia muito importante, num livro de igual valor, cuja capa grossa deveria pesar mais do que a minha mochila.


No instante seguinte, chegou um senhor que penso ser um auxiliar, ao qual o Padre informou que a peregrina tinha lá ido carimbar a credencial. Esse "peregrina" dito dessa forma tão eloquente deu-me uma dose não esperada de responsabilidade.


Ao despedir-se, o Padre perguntou-me a que paróquia pertencia, tendo ficado admirado com "Sé de Lisboa" (onde levantei a credencial dois dias antes). "Então, porque não fala português?", perguntou-me. "Também falo", respondi-lhe eu, inocente, pois ainda não tinha tido contacto suficiente com o galego (um "portunhol" de chorar a rir). O Padre desejou-me, com carinho paternal, boa caminhada e que não me canse muito. Saí de lá com a sensação de que me tinham baptizado naquele encontro, tal intenso que foi.

Amanhã iniciarei a caminhada até Santiago de Compostela. Esperam-me pouco mais de 100km, em cerca de 5 dias.


A inspiração vem da Ana, que leva 2 dias de avanço. Precisei de 2,5 dias para me preparar e lançar-me a esta viagem interior, desde que me decidi a por os pés na estrada.


Faço-a sozinha. É um retiro, que vem a calhar para quem tem um mês para se despedir dos "intas" e entrar nos "entas".


Não sei se chegarei ao fim ou se ficarei pelo meio. Mas o importante já está assegurado. A vontade.


O caminho faz-se caminhando.

Vigo, 23 de Setembro, 2016



Etapa 1 - Vigo - Redondela (24/09/2016)


Como sabia de antemão que a primeira etapa era curta, podia dar-me ao luxo de sair tarde. Mas acabei por abusar. Levei 1h para tomar o pequeno almoço e deixei o hotel as 11h.


Tive que recorrer à ajuda do senhor que me serviu o pequeno almoço, pois o início do caminho não se encontrava no meu mapa da cidade de Vigo. Indicou-me o caminho à moda antiga, mas com notória pena de mim, que ia fazer a pé pouco mais de 1km, do hotel para a partida, como se isso representasse algo comparando aos 15km que me aguardavam desse ponto até o final da primeira etapa - Redondela.


Fiz-me ao alcatrão e quando ia a um terço do caminho, avistei o senhor num carro que deveria ter a idade dele, acenando-me com o corpo inteiro para entrar no carro, pois levava-me ao ponto. Não adiantou insistir com ele que eu estava no modo "cavalo que corre por gosto", tive que aceitar a oferta para o mesmo não ficar ofendido.


A Ana tinha-me enviado indicações precisas. Lá estava a Rua Cantabria, a partir da qual (alguns km's depois) apanharia a Senda da Auga, um trilho plano pelo bosque de 23km, mas que apenas um troço fazia parte do meu trajecto.

No início da Cantabria agradeci e deixei a boleia, não fosse o senhor insistir em deixar-me na Senda da Auga.


O caminho é indicado com setas amarelas, normalmente desenhadas nos postes de iluminação. Quando existem 2 alternativas possíveis, para além da seta que indica a direcção e sentido correctos, na alternativa "errada" consta uma cruz também amarela.


Durante as minhas passadas, não encontrava colegas peregrinos no caminho, mas sim muitos ciclistas e corredores. Sobretudo, muitos ciclistas da terceira idade a fazer inveja a muita gente.


No meu lado esquerdo prolongava-se uma vista muito bonita, que mistura verde com casas de campo sobre um rio imenso.

Passei por uma zonas de eucaliptos, onde apetece permanecer um bocado a respirar sem pressa.


Quando já tinha feito cerca de 12km, fiz a minha primeira paragem, para alongar, encher a garrafa de água na fonte e comer uma banana. A Patricia não escondia a alegria de encontrar alguém. Viu-me, cumprimentou-me e instalou-se confortavelmente numa pedra. Tivemos 10 minutos a falar espanhol, ambas convencidíssimas que éramos espanholas, até que mudámos o chip para português com uma valente gargalhada. A danada já tinha feito 23km hoje, a partir de Freixo. E cerca de 100km a partir de Viana do Castelo, de onde começou a caminhada há 5 dias atrás.


Continuámos os 2-3km que nos faltavam e juntas procurámos um sítio para passar a noite, em Redondela. O albergue oficial estava lotado.

Pelo caminho de Santiago existem albergues para os peregrinos, cuja noite custa à volta de 5-6eur, em camaratas de 20 camas. A Patrícia partilhou a experiência da noite anterior, em que havia dormido num quarto de 20 camas com apenas 4 companheiros, mas que um deles ressonava com a intensidade de 40.

Conseguimos um albergue não oficial, mas muito bom, a 10eur por noite e numa camarata de apenas 4 pessoas. A duas casas-de-banho são partilhadas por mais usuários do que a fila da segurança social mas, um duche quente depois de uma longa caminhada, por si só já é um luxo, pelo que não se olha a detalhes que não sejam práticos.


Associado ao duche, vem a lavagem da roupa que se usou, à mão e com sorriso na cara. O nosso quarto possui uma varanda com estendal suficientemente enorme para as necessidades de todos. 


Os albergues também possuem cozinha para quem não abdica da gastronomia própria ou, na maioria dos casos, para se alimentar bem sem agredir o bolso. No meu caso, depois de uma caminhada longa, a última coisa que apetece é instalar-me à frente do fogão. Hoje provei os mexilhões típicos de Redondela, num restaurante económico.

Encontrava-me a estender a roupa quando apareceram 2 portugueses na varanda comum. Tinham acabado de chegar de Tui (é conhecido pelo início do caminho português), 36km depois e com bastante troço a subir. Fizeram-me lembrar a razão pela qual desisti de fazer o caminho português (o nível de dificuldade da primeira etapa é inadequado para um início).



Mas a valentia deles não pára por aqui. Começaram o caminho em Barcelos, há 4 dias atrás, e a primeira etapa (+30km) foi de loucos, segundo a descrição deles, subindo km's de gatas, numa montanha íngreme que não acabava nunca. Os pés de um deles estão num estado de dar dó. Auto-apresentou-se como o indivíduo que há dois anos não anda, a não ser da televisão para a cozinha e vice-versa. E meteu-se nisto, à bruta. Vai a meio com um joelho lixado e os pés em carne viva, aos quais injecta betadine todas as noites antes de dormir. E frisou que está a fazer apenas por desporto, não está a cumprir nenhuma penitência. Algo Incongruente, não?


O caminho de Santiago tem todo o tipo de peregrinos. Preparados fisicamente, psicologicamente fortes, aqueles que estão a provar algo a si próprios, os que respeitam as limitações do corpo, os valentes, os livres, os amadores e aqueles que não sabem nem querem saber a razão pela qual fazem isto. Para não falar dos religiosos.


Da minha parte, a primeira etapa confirmou que neste momento estou no lugar certo, no tempo apropriado.

Enquanto escrevo, estendida na minha cama, aprecio a melodia da chuva a cair.


Redondela, 24 de Setembro 2016






Etapa 2 - Redondela - Pontevedra (25/09/2016)


Acordei às 8 em ponto sem despertador e apercebi-me que os meus 3 companheiros de quarto me tinham abandonado sem fazer barulho.

Demorei imenso a adormecer, devido ao sono agitado do rapaz de Barcelona, na cama superior do meu beliche de ferro. Fiquei com ideia que ele estaria a sonhar com a caminhada, pois virava-se constantemente de um lado para o outro. A namorada estava na cama inferior do beliche da Patricia. Eram ambos de Barcelona e apresentavam um orgulho inevitável de quem não toma banho por opção, mesmo depois de ter feito 36km a pé, no mesmo dia.

A minha relação com a Patrícia é de peregrina independente. Cada uma faz a caminhada a seu tempo e acabamos por encontrar-nos no final do dia, no albergue, onde partilhamos o tempo livre.


E penso que a melhor forma de fazer o caminho de Santiago é sozinho(a). Para não comprometer o "amigo não empata amigo". Nestes dois dias, observei casais e/ou duplas de amigos(s) com ritmos significativamente diferentes e cuja expressão facial desenhava um "Meu Deus, já poderia estar a 5km daqui" contra um "Puxa, ele(a) não percebe que eu não dou mais do que isto?". Prolongam ambos o sofrimento, em respeito ao politicamente correcto, esquecendo o respeito pela vontade própria.


Prova disso é o caso do Carlos. O tal que chegou ontem com os pés em forma de bife batido com aquele instrumento de cozinha que entretanto caiu em desuso. Recordo que o mesmo fez ontem 20km dos 36km, com havaianas, pois os pés expulsam qualquer objectivo que se assemelhe a calçado fechado. Encontrámo-nos na cozinha, no final do meu pequeno-almoço. Ele vinha com um sentimento de frustração extrema, porque tinha terminado a aventura, por ordem expressa do médico que lhe prescreveu 4 dias de repouso absoluto.


- Andei os últimos 4 anos no sofá... - repetia-me como se estivesse a justificar-se a si próprio - E meti-me nisto logo a abrir...


- Meu amigo, sabes que devemos respeitar o nosso corpo. Aos vinte ainda temos o desplante de desafiá-lo sem limites, porque pensamos que somos super-heróis - comecei por dizer. Depois, consolei-o frisando que ele tinha feito 2 etapas dificílimas e já contava com 100km, o limite inferior para se considerar ter feito o caminho de Santiago. - És um super-herói. Mas de agora em diante, trata de respeitar o teu corpo.


- Pois... Eu até queria fazer isto nas calmas. Mas o meu amigo quis sempre "fazer a abrir". E eu não tive coragem de ficar para trás..." - revelou-me, com arrependimento maior do que a dor nos pés, de não ter feito o caminho sozinho.


- Mas como não respeitaste o teu corpo, o mesmo acabou por obrigar-te a ficar para trás. É assim que funciona. Levamos ao limite, até que o corpo pede SOS e obriga-nos a parar para que reflictamos. Olha, porque não apanhas o autocarro e vais até Santiago? Pelos km's percorridos já mereces esse gostinho.

Posto isto, pus a andar-me para os cerca de 18km que me aguardavam. São 18km que equivalem a muitos mais em plano, pois dois terços foram a subir.

Pelas 10:15 da manhã, cerca de 6km percorridos, cheguei à terra das ostras, Arcade. No restaurante "Avenida" abasteci-me com um segundo pequeno-almoço do dia, de chorar por mais. Ostras fresquissimas, para começar, "empanadillas" feitas no forno e com recheio de bonito (atum) e, no final, um delicioso café com leite de soja.

Retomei o caminho, fazendo outra paragem de meia hora, menos de 1km depois. O responsável foi Vencellado ao Rio (foto anexa), um sítio lindíssimo com um rio, duas pontes com charme antigo e moderno, respectivamente e uma luz natural fora de série, fazendo reflexos de postal. Pela primeira vez, desejei ter a minha máquina comigo, mas a ilusão passou no imediato e pus-me a desfrutar daquela maravilha a olho nu.







Aos 11km, depois de uma longa subida a pique, encontrei, no topo, Pablo e Manuel, dois galegos com uma barraquinha montada, a quem comprei uma pulseira com o símbolo do caminho.


Aproveitei para perguntar o significado do símbolo (concha).


É conhecido por "La Concha de la Vieira). A parte oval do lado esquerdo representa Santiago de Compostela e os 9 troços diagonais que aí confluem representam os diferentes caminhos até Santiago.


Por outro lado, dizia-me Manuel com orgulho nítido, a Via Láctea passa por cima de Santiago de Compostela (em latim Campus Stelae, que significa Campo de Estrelas) e vai até Finisterra (conhecida antigamente como o Fim do Mundo).

A paragem durou uns 40 minutos, com uma conversa muito interessante, comigo instalada num enorme pedregulho com costas, que faz inveja a muitos sofás modernos.


Comecei finalmente a descer e encontrei várias videiras, cujas uvas doces de pele amarga me deliciaram durante 1km.


Cerca de 3,5km depois, chegava à minúscula Capela de Santa Marta, onde pude carimbar a minha credencial de peregrina. 

Pelas 14:30, cheguei finalmente a Pontevedra, depois de ter passado por um túnel antiquíssimo. À entrada, encontra-se o albergue oficial, cujo quarto alberga 40 pessoas. No primeiro instante, pensei que a recepcionista estava a brincar comigo, mas constatei 20 beliches espaçados de meio metro entre si. A primeira coisa que me veio à cabeça foi "40 pessoas ao molhe, a respirar neste espaço". Penso que nem na tropa.

Os restaurantes têm menus para peregrinos, com sopa, prato, sobremesa, bebida e café. Hoje deliciei-me com sopa de lentilhas e chocos à cebolada.


Encontrei um Hostel com condições infinitamente melhores do que o albergue oficial e por uma diferença de preço de apenas 4 euros. Só tenho uma companheira a dividir o quarto comigo. A Patrícia também escolheu o mesmo e encontrámo-nos sem ter combinado nada.


Estávamos com preguiça de sair para jantar, até que Ciaron, irlandês, convidou-nos a comer uma massa que ele estava a tentar fazer pela primeira vez, no microondas. Olhámos uma para a outra e decidimos arriscar, tal era a preguiça. Resultado, saiu uma rica pasta tipo napolitana, al dente. Fiquei deveras impressionada e fez-me lembrar a expressão da Marina que há 4 anos atrás, no Fim do mundo argentino, apreciou a minha simples massa como se fosse a melhor comida do mundo. Viajar tem destas coisas, o simples torna-se o belo, o saboroso, o autêntico.

E não podíamos esperar mais por um serão tão rico, quando o peregrino tailandês (fiquei sem saber o nome) resolveu presentear-nos com massagem de reflexologia usando um instrumento de madeira que eu nunca tinha visto.

Enquanto isso, Ciaron aprendia a desenhar com um livro do Hostel, saindo-lhe resultados nunca antes imaginados. Minutos antes, falávamos de Van Gogh, que desenvolveu as suas habilidades de forma semelhante. Minutos antes, Ciaron confessava-me que tinha um trabalho muito chato, como recepcionista de um hospital e que estava a pensar numa mudança. Minutos antes, ele não queria tentar desenhar por nada deste mundo...

Estas cenas passavam em simultâneo, ao longo de uma mesa corrida de madeira, numa sala onde os livros são os principais protagonistas.


Pontevedra, 25 de Setembro 2016





Etapa 3- Pontevedra - Caldas de Reis (26/09/2016)


O senão das camaratas é o enorme risco de não conseguir dormir-se bem. Estive em claro até as 2h na noite passada, devido a uma sinfonia de roncos que vinham dos quartos vizinhos, mas cuja separação física era ilusória.

Não sei se seriam 6h da manhã, ainda escura como breu, quando me apercebi de uns movimentos dos primeiros peregrinos. Ainda ensonada, pus os tampões nos ouvidos, a venda nos olhos, tendo dado novo sinal de vida apenas às 9:15. Nem queria acreditar, hoje tencionava sair mais cedo, pois o caminho seria longo (23Km). Os quartos estavam desertos e as senhoras já tinham iniciado a limpeza.

Preparo-me o mais rápido que pude e, quando voltava da casa-de-banho, encontrei o Ciaron sentado no quarto anterior ao meu. Fiquei tão surpreendida quanto feliz por saber que eu não era a única preguiçosa. Mas afinal ele ficaria o dia em Pontevedra, pois encontrar-se-ia com uma amiga que chegaria de uma etapa, no final do dia.

Combinámos tomar o pequeno-almoço no centro, que ficava no caminho. Já na cozinha, constatei que tinha afinal 3 colegas de preguiça. A australiana de Brisbane, a alemã e a sueca. Todas estavam a tomar o pequeno-almoço com a maior das calmas, preparado pelas próprias e com tudo o que tinham direito.

Encontrámos um sítio maravilhoso, indicado por uma galega na rua. Com esse pequeno-almoço forte e tomado às 10:30, não teria razões para parar durante a caminhada. E ainda o reforcei com fruta que entretanto adquiri na frutaria mesmo em frente.

Parti por volta das 11h e o Ciaron lançou um palpite para a minha hora de chegada ao destino: pelas 18h.

Dois km's volvidos, encontrei Pilar e Juan, um casal de Toledo. Aliás, bem dito, eles é que me apanharam, pois vinham com toda a pujança, atrás de mim. Já estava a criar juízos de valor quando me esclareceram que vinham de Redondela (a origem da etapa que tinha feito no dia anterior). Ou seja, já levavam 20km nos gémeos e ainda eram 11:30. Os dois tinham uma sintonia nas passadas, ambos traziam uma mochila da tropa, o que me suscitou curiosidade. Até que me foi revelado pelo Juan, parecendo que me lia o pensamento, que é militar. - Ah bom! Isto para ti é canja! - rematei.

A palavra mágica militar foi o suficiente para querer desafiar-me a mim própria e tentar seguir-lhes o passo.

Fizemos 7km juntos, numa passada rápida. Os dois já fizeram uma série de caminhos, sendo a primeira vez que fazem este português. Dizem preferir o francês, pois tem maior contacto com a natureza e menos asfalto. Estão a fazer uma média de 25km/dia, tendo feito etapas de mais de 30km.

A melhor dica do Juan, que eu já não me lembrava e não tinha usado até então, foi caminhar na diagonal, tanto nas subidas como nas descidas, para proteger os joelhos.

Outra dica que me deram foi a de colocar vaselina nos pés antes de dormir e de manhã, antes de iniciar a caminhada. Disseram-me que a danada da vaselina é a única que evita quaisquer bolhas. Esta noite já estou a experimentar a receita.

Chegados ao destino, amigo não empata amigo, despedimo-nos sem eu parar a caminhada. Entretanto, juntou-se a australiana à minha passada, tendo caminhado juntas por cerca de 3km. Esses 3km permitiram-me matar as saudades de Brisbane e da Austrália.

Ela também se auto-rotula como "lazy", com bastante orgulho. Acorda em média às 8:30, leva no mínimo 1h a tomar um pequeno-almoço reforçado e depois lança-se ao caminho com uma velocidade tal que vai alcançando e deixando para trás alguns peregrinos madrugadores.

Tiro-lhe o chapéu. Fiz uma paragem técnica de menos de 1 minuto e nunca mais a alcancei (apesar de eu ter continuado com um ritmo rapidíssimo, fiz algumas pausas curtas para fotos).





Esta etapa podia ser catalogada como etapa das vinhas. Nunca comi tanta uva em tão poucas horas. E sempre sem parar, tirava o cacho da videira e ia despindo-o com passadas largas e rápidas.


Cheguei a Caldas de Reis pelas 15:10, sem saber ler nem escrever. Fiz uma média de quase 5km/h o que é normalmente uma velocidade esperada para um caminhante expert que anda nisto todos os dias.


Continuo a brindar as etapas com uma bela refeição, à chegada ao destino. Continuo fiel ao mar. Hoje comecei com uns mexilhões e bacalhau fresco cozido, que foi uma surpresa muito boa. Como diz Juan, este caminho é para a "homenagem", nome que ele dá a um belo trato do estômago. Tal como eu, faz os km a pensar no banquete final.

Fiquei hospedada num albergue não oficial, com a sorte de ficar num quarto de 3Pax sozinha, por apenas 10eur. Penso que se não tivesse tido este privilégio, teria optado por ficar num hotel, pois hoje mereço dormir.

"El Camino" cada dia é diferente e a cada k'm que passa, vai tornando viciante. Já penso em outros caminhos.

Caldas de Reis, 26 de Setembro 2016




Etapa 4 - Caldas de Reis - Padrón - Esclavitud (27/09/2016)

Após um sono dos anjos, acordei às 8:30 e fiz a minha yoga nidra até às 9:00. Parece que o meu piso foi estrategicamente ocupado pelos preguiçosos, pois só comecei a sentir algum movimento depois de ter acordado.

Na cozinha que parece a da nossa casa, tomei a primeira parte do pequeno-almoço: 2 kiwis, 1 banana, amêndoas e água com limão.

Já no café, tomei a segunda parte, com torradas e café com leite de soja. Realço o facto da Galiza estar a anos-luz de Portugal, em relação ao facto de em qualquer estabelecimento, desde os mais humildes, terem a opção de leite sem lactose ou de soja.


Comecei a penúltima etapa às 10:30, tendo visitado ao km 1,5 as termas, onde os pés dos peregrinos (os que não têm problemas de circulação) são premiados, após terminarem a etapa anterior.


Caldas de Reis, apesar de ser pequenina, é relativamente jovem. Ontem ao final do dia encontrei imensa criançada a brincar (como nos velhos tempos) numa praça, fazendo-me realçar que afinal ainda existem alguns "fins do mundo" onde as crianças crescem de forma saudável, sem gadgets. Também vi duas adolescentes, à tardinha, comodamente sentadas num banco de pedra da pequena ponte de pedra, numa conversa que parecia uma troca de confidências, sem vestígios de telemóveis.


Ontem ao passear por Caldas de Reis, carimbei a minha credencial na Catedral de Santo Tomás.


A credencial do peregrino é um documento dedicado aos peregrinos a pé, bicicleta ou a cavalo, e a mesma tem a finalidade de solicitar a "Compostela" (confirmação de se ter cumprido a peregrinação) na catedral de Santiago. A "Compostela" é concedida apenas a quem tenha concluído os últimos 100km a pé ou a cavalo ou os últimos 200km de bicicleta. Durante o "camino" há que carimbar diariamente a credencial, pelo menos em duas localidades diferentes, pois só assim é creditado o passo. São válidos carimbos de igrejas ou catedrais, albergues e/ou restaurantes.


Voltando ao caminho, o início (cerca de 1/3) da etapa é a subir. No km 3, encontrei a australiana Emma que me tinha largado ontem e a amiga Cassie que, só hoje soube que está a viajar com a Emma. Nas caminhadas, têm normalmente uma distância de 12-15m entre si. Cada uma leva os fones nos ouvidos. Mas a Emma, ao ver-me, deixou os fones e não escondeu a alegria de me rever. Perguntou-me onde tinha ficado na noite anterior. Quando lhe descrevi o Albergue Timonel, a sorte de ter ficado sozinha num quarto e as comodidades pouco habituais nestes albergues para peregrinos, ela não disfarçou os ciúmes, revelando-me que tinham dormido num quarto de 20Pax com ressonadores-expert vizinhos.


Já levam quase 3 meses de viagem. Começaram em Marrocos, onde trabalharam em regime de part-time num Hostel a troco de hospedagem de graça. Subiram para a península Ibérica e tencionam ir para a África do Sul. Só assim fez sentido o tamanho descomunal da mochila da Cassie, magra e dona de umas pernas longas, bonitas e bronzeadas, com destaque extra dado pelos calções de cor laranja fluorescente.


Durante os km que partilhámos, ofereci-lhes cachos de uvas, fazendo-as deliciar com a surpresa de quem não via as inúmeras videiras ao longo do caminho desde ontem, pela primeira vez.


Há quem caminhe sem ver o que o rodeia.


Fizemos uma paragem técnica numa estação amovível para os peregrinos, com wc e bebidas quentes e frias. A Emma queixava-se das coxas. Mas no entretanto, chegou um peregrino alemão que diz ser massagista e engenheiro civil nas horas vagas, que lhe pôs fina com apenas 2 toques. O companheiro do massagista não escondeu o privilégio de ter massagens diárias no fim de cada etapa.


Após a paragem, retomei o meu ritmo, tendo a Emma e a Cassie reduzido o seu ritmo, na companhia do massagista e do privilegiado.


Ao completar 16km de uma caminhada com muitas subidas e descidas em 3 horas, não pude desprezar um estabelecimento castiço, em Pontecesures. Confirmei com Manuel Vázquez, proprietário de "A mesa de pedra", que estava a apenas 2km do destino final (Padrón). E ainda era bastante cedo.


Este sítio medieval tem uma vibração fora de série e eu fui recebida com a importância da primeira cabo-verdiana a pisar esse chão. Pedi os famosos "pimientos de Padrón" e, discretamente, antes de passar para a cozinha, Manuel mudou o CD que estava a tocar por um da Cesaria Évora, seu ídolo incontestável, que teve a felicidade de a ver ao vivo.


Fui brindada com uma conversa magnetizante, "homenageada" pelos deliciosos "pimientos de Padrón". A história dos mesmos remonta do século XVI, com o "descobrimento" da América. Do Convento Franciscano de Herbon (a 3km da nossa localização), foram enviados como missionários para o México, doze monges franciscanos. Estes participaram numa exploração pela costa do Pacífico até à actual Califórnia e, como consequência, fundaram as cidades com nome espanhol, tais como San Francisco, San Andrés, Santa Clara, etc. No regresso dos missionários a Espanha, muitos anos depois, trouxeram plantas para o Convento de Herbón. Uma das plantas eram os "pimientos de Padrón, que na realidade são "chiles jalapeños" (extremamente picantes) que, na Galiza, conseguiram "domestica-los" com cuidados, escolha do ph da terra, rega continua e recolha quando são muito pequenos, pois agora já quase não picam.


Na "Mesa da Pedra" os pimentos são de cultivo próprio. Eles separam os picantes dos não picantes, pelo que pode ser ao gosto do freguês.


Manuel aconselhou-me a fazer 8km adicionais, caso os meus pés o permitissem, convencendo-me com suas motivações: para além de me instalar comodamente num hotel com quarto e wc privados, por apenas 12eur, reduzia a última etapa, a de amanhã, para cerca de 17km.


Um casal português havia-lhe falado deste hotel e o próprio visitou-o a confirmar as condições das instalações.





Depois de 1h maravilhosamente passada com Manuel e suas coleções, e na companhia de Cize, ainda era suficientemente cedo (14:30) para me lançar ao desafio.


Passei por Padron e segui caminho, pelo início da quinta etapa.


26km depois de ter deixado Caldas de Reis, chegava a Esclavitud e ao hotel Hong Kong. Dona Toia é super amável e preparou-me um polvo com batata da horta, do qual não me esquecerei tão cedo. Finalizei com um chá de ervas também do quintal, com mel caseiro.


Hoje vi TV pela primeira vez, graças ao jogo de futebol Borussia de Dortmund-Real Madrid, com uma plateia galega interessante.


Hoje cheguei à conclusão que o caminho vai-se fazendo à medida dos passos. As etapas são orientativas, mas como diz Manuel, o caminho que hoje é conhecido pelo "standard", é-o porque alguém se lembrou de andar com um spray na mão a desenhar as setas. Cheguei também à conclusão que as melhores dicas são dos locais, que normalmente já fizeram "El caminho"'dezenas de vezes. E quanto menos conhecimento se tenha antes de o fazer (como no meu caso), menos inércia ofereceremos às surpresas boas que se nos vão aparecendo.


Esclavitud, 27 de Setembro 2016





Etapa 5 - Esclavitud - Santiago de Compostela (28/09/2016)

Dormi até às 9:00 e acordei com uma disposição fora de série. O pequeno-almoço caseiro da tia Toia deu-me ainda mais cor à manhã, quente e de céu limpo. Ou seja, condições apropriadas para a caminhada.

A tia Toia fazia-me lembrar a minha tia com o mesmo nome, em Cabo Verde. Durante a minha infância, aqueles lanches com cuscuz, fdjose e gargalhadas eram uma constante na casa dela.


Nesse dia bati o meu record pessoal e iniciei a jornada às 11:40, pois na minha ideia quanto mais tarde começasse, mais tarde terminaria o caminho que, afinal, não queria que terminasse nunca. O início foi marcado pelas videiras que traçavam o caminho, com a particularidade de que não foi necessário auto-servir-me pois um senhor dos seus 70 ofereceu-me duas mãos cheias de uvas, enquanto as colhia.

Esta última etapa, encurtada por mim no dia anterior (graças ao Manuel), é conhecida como a mais dura do caminho Português. Para mim, foi a mais aborrecida, em virtude dos muitos km's feitos em estrada nacional.

Os últimos 15km são praticamente sempre a subir, até alcançar a Catedral de Santiago.

Na Rua de Francos, cerca de 3km após o meu inicio, desejei não ter comido tanto no mata-bixo. O bar-restaurante Parada de Francos convida-te magneticamente a gozares da vibração do espaço por, pelo menos, uma hora. É o spot onde os peregrinos almoçam, a meio-caminho da etapa, quando começam em Padrón.

Quando ainda me faltavam 10km dos 18km previstos para o dia, comecei a sentir uma inércia enorme que, no momento, pensei dever-se às subidas íngremes. Dei por mim a fazer um esforço sobrenatural para o que me saia naturalmente nos últimos quatro dias e não percebia a razão. As pernas pesavam como chumbo.

Valeram-me uns funaná dos Ferro Gaita, bem como "Sheila" de Nando da Cruz, que me faz lembrar momentos deliciosos entre primos, na caixa aberta da carrinha, durante o Encontro dos Tolentino em 90.

E curiosamente, mais do que nos dias anteriores, ia recebendo mensagens de animo, sobre várias formas. Desde a adaptação do "D'ont stop" no sinal Stop, "Con ganas se consigue todo. Animo caminante!" na guarda de segurança da ponte sobre a linha férrea; até ao "Si no sabes qué ponerte, ponte feliz", na parte exterior do primeiro café que encontrei ao chegar a Santiago, mas ainda a 2km da Catedral (meta).

A minha angustia tomou tais proporções que senti uma urgente necessidade de estar contactada. Entrei no café, conectei-me ao wi-fi e encontrei a triste notícia que o meu corpo tentava dizer-me há horas atrás. 

O tio Armindo, o "cool one", tinha-nos deixado sem pré-aviso. Entrei em choque. Não podia acreditar nessa brincadeira de mau gosto. De repente, todo o caminho deixou de fazer sentido. Chegar à meta deixou de fazer sentido. Sai do cafe cambaleando sem rumo, apesar de ir em direção à Catedral. Memórias das mais belas tomaram conta de mim. A inspiração que ele sempre foi para mim começou a injectar-me força lentamente.

Chegada finalmente à Catedral, avistei uma fila de centenas de peregrinos ansiosos por obter a certificação de peregrino e, como eu não sou de priorizar oficializações, valorizo mais a minha verdade, decidi ir à procura de um alojamento, tomar o banho merecido e voltar quase a horas de encerramento, caso tivesse disposição para tal.

Consegui um hotel muito simpatico e confortável, onde pude tomar o duche mais de toda a caminhada.

Regressei à fila da Catedral faltavam 10 minutos para encerrar e a mesma tinha sido reduzida a uns 5%.

Fui a um restaurante com a missão de celebrar a vida do falecido tio Armindo. Ele vivia intensamente e desejava que os seus o fizessem também. Por isso nos dávamos tão bem. Nos entendíamos. Comi, bebi com o tio, em memória dele. Muita falta nos fará, mas sabemos que continua presente nos nossos corações.

Partilho um pequeno texto que resume a forma como ele tratava a vida por tu:


"Eu tenho por hábito comemorar um dia de vida em cada dia. Pelo que o dia do meu aniversário, comemoro-o como o dia último dos dias que completam o ano. E, assim consigo comemorar durante o ano inteiro e, intensamente. Isto, porque toda a vida deve ser vivida intensamente.


Com esse espírito, agradeço a todos os que se lembraram de mim no ultimo dia do ultimo ano que vivi...e espero continuar a comemorar pelos dias que seguem...."



Santiago de Compostela, 30 de Setembro 2017




Dia 6 - Santiago de Compostela (29/09/2016)

El Camino termina (ou começa) com a missa del peregrino, na Catedral de Santiago de Compostela. Existem duas missas diárias, uma de manhã e outra à tarde.

A Catedral, majestosa, faz-nos sentir pequeninos. A missa acolhe centenas de peregrinos, de várias nacionalidades.

A mensagem do padre é eloquente e suscita um abanar da consciencia. O caminho começa precisamente agora. "Ao passar a porta desta Catedral, todos nos tornamos peregrinos, não importando o meio que utilizámos para cá chegar".

No caminho da vida, qual é a seta amarela? Quais são as que te fazem levantar e caminhar? O que nos guia o caminho a seguir? Família, amigos, trabalho, etc, todos vão marcando diariamente o nosso caminho.

"A seta amarela aponta o coração, que é o que dá sentido à vida (orientação). Liberta o teu coração de vingança, ódio... Enche o teu coração de amor, paz, verdade, justiça, perdão."

Existe muita gente que caminha sem setas, com a vida sem sentido. Vivem tristes, apagados, angustiados.


E tu? Já encontraste a(s) tua(s) seta(s)?


Santiago de Compostela, 30 de Setembro 2017

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