A nossa transformação muitas vezes começa pelo cabelo
A nossa transformação muitas vezes começa pelo cabelo.
Os meus caracóis definidos faziam a minha apresentação nos meus tenros primeiros 2 anos de vida.
Os vestidos que recebia de Paris, da minha tia-madrinha, completavam o meu cenário de menina-princesa naquele ambiente simples e florido da ilha da Brava.
Entretanto, convenceu-se que os meus fios eram demasiado finos e leves. E que o meu cabelo necessitava de mais força e presença. Pergunto-me hoje se a mensagem terá chegado energeticamente através da minha alma.
A minha mãe, aconselhada pela minha tia especialista na arte do cabelo, entregou-me ao corte que me daria força e presença.
Acontece que o corte revelou-se transformador. O meu cabelo quadriplicou em número de fios finos, e fechou o encaracolado num aperto, modificou a textura, revelando-se uma vasta cabeleira que me daria que fazer por mais de duas décadas.
Tive que aprender a ser a única menina, no meu círculo de amigas, a usar "afro" devido ao meu cabelo curto, enquanto todas as outras meninas na ilha do Fogo exibiam os seus penteados de princesa.
Quando cheguei a Portugal, com sete anos de idade, conheci uma realidade mais profunda e dolorosa.
Comecei a ouvir a crença que me fez construir paredes à volta daquilo que eu tinha na minha cabeça "cabelo muito difícil, demasiado encaracolado". O penteado que me faziam em criança era sempre o mesmo, duas tranças em simetria. A nossa ajudante, que me penteava todos os santos dias, não entendia o contraste entre a sensibilidade do meu couro cabeludo com a vastidão do meu cabelo, penteando sempre com a força que lhe caracterizava, partindo os fios que, apesar de vastos, não deixavam de ser extremamente finos. Isso provocava-me uma dor que me acompanhava do couro cabeludo à alma.
Eu detestava aquele penteado e, talvez por isso, apreciava assimetrias em tudo o que fazia sob as minhas rédeas. Até mesmo nas minhas expressões artísticas durante o liceu dedicado às artes, prevalecia sempre a assimetria, o abstracto e o surrealismo.
Em Lisboa, vivenciei o que hoje se chama "bullying", na escola, à volta do meu cabelo (as tais duas tranças) e da minha origem africana. Isso ajudou a enraizar ainda mais a minha não aceitação do meu cabelo.
Decorria metade da adolescência quando a minha mãe decidiu facilitar-me a vida e introduzir-me ao mundo dos químicos, alisando o cabelo. Não me esqueço o quanto lhe fiquei grata na altura, pois conseguia finalmente pentear o meu cabelo como me apetecia, sem grandes dificuldades. A minha mãe era contra os químicos e usá-los na minha idade considerava como "último recurso". Então, lembro-me que ela escolhia os produtos mais fracos, que permitiam que eu mantivesse os meus caracóis, apenas abrindo-os a ponto de facilitar o deslizar do pente num volume reduzido.
Há vinte e quatro anos atrás, no dia em que completei 2 décadas de caminhada, decidi fazer uma pausa com os químicos, "cortando o mal pela raíz". Fui à cabeleireira que me assistia mas recusou-se terminantemente a cortar um centímetro que fosse dos meus longos cabelos. Enquanto afirmava, continuava o processo de coser um cabelo não natural a uma cliente. Chamavam a esse processo tissagem, o que passou a ser conhecido recentemente como extensões, a partir do momento em que as não africanas aderiram à moda.
Com o não redondo que eu não gosto de ouvir e apenas aguça a minha decisão, entrei no primeiro barbeiro que encontrei. Tive um tratamento oposto, decisivo e sem margem para arrependimentos. Sem que eu tivesse tempo de me preparar, fazer uma trança de recordação, a máquina com o pente 1 deslizou-me sobre o couro cabeludo, levando o cabelo e tudo o que ele acumulava e que não me servia mais, para trás.
Esse renascimento foi inesquecível como qualquer manifestação da vida. Passo a passo, fui conhecendo o meu cabelo e reaprendendo a caminhar.
Depois veio a parte dos cabelos brancos. Herança da minha raíz. Os cabelos brancos chegam bem cedo e sem aviso prévio.
O facto de crescer a observar a minha mãe a pintar a raíz dos cabelos a cada duas ou três semanas, dissipou qualquer eventual dúvida que eu pudesse ter em relação a esconder os brancos. Recebi o meu primeiro fio de sabedoria aos 18 anos e, aos 25, já tinha naturalmente madeixas brancas. Decidi desde cedo que não esconderia os meus brancos e que, se tinham chegado, existiria uma razão subjacente. Escolhi igualmente adaptar-me às diferentes fases do branqueamento do meu cabelo.
Ainda estava na universidade quando encontrei a primeira pessoa a conhecer, de facto, a fibra do meu cabelo. A Lisa é uma cabeleireira com uma sabedoria imensurável sobre os cabelos e como trata-los pela fibra. Ela tem um prévio encontro com a fibra do cabelo, natural e sem quaisquer produtos. Através dela conheci a estrutura e textura do meu cabelo e achava piada quando ela me dizia "o teu cabelo tem fios finos e deve ser penteado de forma especial para não partir. Ele tem um nível de mestiçagem muito grande e não pode ser tratado como um cabelo afro, menos ainda como um cabelo europeu", pois finalmente alguém me entendia. A Lisa alquimista fazia preparados personalizados a cada tipo de cabelo e, por isso, tinha um leque de clientela que não lhe largava. Mas como muitas outras preciosidades na vida, pagava-se um preço alto: o dia de visitar a Lisa era um dia completo, pois esperava-se o dia todo pela chegada da vez e o tratamento era feito já no decurso da noite.
Devo confessar que nas minhas visitas semestrais, tinha umas regalias deliberadas pela própria Lisa. Por estudar no Técnico (conhecida na altura como a faculdade de engenharia mais conceituada de Portugal), ela fazia tudo para me despachar, dizendo às clientes que eu precisava ir estudar. Sentia-me uma felizarda, ainda que a minha consciência me mostrasse solidariedade para com as companheiras de luta.
Naquela fase de transição, em que a raíz natural nascia e ficava pendurada pelos fios manipulados, o meu cabelo dava-me sinais que eu não "queria ver": partia-se, ficava fraco e as pontas deixavam de encaracolar. Cada vez que nascia nova raíz, com força e crescimento rápido, o meu cabelo tentava um renascimento, mas eu boicotava com a renovação de químicos.
Em Angola tive uma nova e pior fase química do meu cabelo. Como não conseguiram decifrar a especificidade dos meus fios, puseram-me químicos agressivos que levaram o cabelo a perder toda a sua flexibilidade. Segundo os padrões locais, o cabelo queria-se liso, esticado sem uma única onda, esturricado pela chapa, após a agressividade do secador a esbanjar fumo.
A falta de flexibilidade do cabelo enquadrava com a mudança do meu estilo de vida durante aqueles 3,5 anos vividos em Luanda: deixei de fazer imensa coisa que me fazia rir sem motivo. De repente, deixei de alimentar a minha alma. Deixei de ir ao teatro porque não existia. Deixei de ir ao cinema ver filmes independentes seguidos da deliciosa tertúlia "à Woody Allen" com os amigos porque não existia cinema. Deixei de fazer exercício físico porque não consegui reunir condições que me permitissem. Deixei de ler por um período de 2 anos. Vivia para 52 fins-de-semana regados de festa e convívios. Deixei-me entrar numa ilusão, através de uma vida "demasiado séria, demasiado responsável, demasiado voltada para fora e para os outros" e, quando me apercebi que me estava a tornar num zombie, tomei novamente as rédeas da minha vida e mudei de ambiente externo. O cabelo teria consequências imediatas à minha decisão.
Cheguei a Lisboa com duas malas de gratidão pela vivência e aprendizagem em Angola e infinitas malas vazias e prontas a serem cheias de luz na fase nova e desconhecida que entregava ao Universo.
Tinha deixado crescer a raiz a ponto de cortar o cabelo com um tamanho médio e deixá-lo totalmente natural. Marcaria a nova fase da minha vida. Simbolizaria a minha libertação. Mais um renascimento se avizinhava.
Preparava a minha viagem de mochila pelo mundo. Depois de uma vida demasiado materialista e superficial em Angola, submeti-me ao minimalismo para reaprender o significado da palavra simplicidade. O corte do cabelo encaixava naquele minimalismo, pois iria precisar apenas de uma dose de simplicidade para o tratar.
Entretanto, deixei-me levar por um pequeno desvio. Indo atrás de uma promoção de uma massagem, acabei por cair na influência de mais um tratamento químico para o meu cabelo, no momento em que ele implorava uma nova respiração.
A massagem nem sequer era para mim, eu apenas acompanhava a minha tia que se encontrava de visita a Lisboa. A veia comercial da cabeleireira brasileira daquele centro de estética foi tão invasiva e insistente que me convenceu a experimentar a "escova progressiva" que me venderam como um método pouco agressivo para o cabelo e que me ajudaria imenso na minha viagem longa, dado que só necessitaria de lavar normalmente e colocar um creme de pentear, apresentando-me sempre "penteada".
É claro que o meu cabelo rejeitou totalmente aquela comédia. Ficou hirte como uma múmia.
No dia seguinte, levei-o à minha salvadora Lisa para me cortar curtinho à rapaz, pois já não havia como manter seja o que fosse. E assim aconteceu o meu segundo big chop que mais tarde virou moda. Lembro ainda que a minha prima Zenne abriu a porta do caminho à libertação meses antes, imediatamente antes de iniciar a sua viagem de mochila pelo mundo.
Durante as primeiras semanas da minha aventura pela América Latina, sentia-me livre dos 1001 produtos que me pesavam a consciência. E o tempo que ganhei?
Comecei novamente a ver cada detalhe à minha volta que me passava desapercebido. Comecei a ver a beleza em tudo o que me rodeava. O formato da folha de uma árvore, os veios nas pedras, o aroma de uma flor, a brisa fresca da manhã, o saborear dos alimentos. Resgatei os meus sentidos.
Comecei a ver a minha face, os contornos, as minhas sardas, os meus sinais. Os meus olhos sobressaíram.
Mulheres do meu círculo diziam-me várias vezes que uma face adornada por um cabelo curto pede uma maquilhagem obrigatória. Eu não entendia a mensagem. Aliás, nunca percebi a razão pela qual as pessoas tendem a rejeitar o natural, o simples, o autêntico.
A relação com a maquilhagem foi herdada da minha mãe. Ela que nunca usou maquilhagem, excepto um bâton discreto numa ocasião de festa, sempre se apresentou com uma beleza tão pura, tão atractiva e tão autêntica. Através dela percebi desde cedo a beleza natural da mulher.
A maquilhagem nunca fez parte dos meus rituais e tão pouco uma necessidade. Sei bem como enfatizar os meus traços através de um rimel e um bâton, para uma festa e, ainda assim, sou capaz de ir a festas sem um pingo de maquilhagem.
Eu contrariava todos os padrões de beleza - cabelo curto natural, brancos rebeldes assumidos, maquilhagem nula - e sentia perfeitamente quando era julgada pelo ambiente externo. Ria-me por dentro.
Cortava o cabelo mensalmente, mantendo o curto. Superava sempre o desafio de encontrar no país onde me encontrasse, alguém que entendesse a arte de cortar o meu cabelo. Alguém que estabelecesse uma verdadeira conexão com ele.
Cumprido o primeiro ano da viagem, decidi deixar crescer o meu "afro" que, no tempo dos meus pais em Cabo Verde, se chamava "black". Tive que aprender a tratá-lo na transição. Começaram os desafios que chegavam juntamente com os caracóis pequeninos e em espiral. Começava a linguagem do cabelo que levei algum tempo a decifrar.
Mas recebia constante e repetidamente mensagens que me confirmavam que estava no caminho certo. Não havia vez que não me atropelasse alguém no passeio, seja em que país fosse, só para me dizer "I love your hair". O meu afro ganhava a presença que se queria no meu primeiro corte aos 2 anos de idade.
No meu sabático de um ano e meio na Colômbia, para além de receber esses originais atropelos na rua, confundiam-me diariamente com uma artista: percussionista, realizadora de cinema, cantora de jazz, bailarina de dança contemporânea, ... Era como as pessoas me viam após dez minutos de conversa comigo: "tienes pinta de artista". O meu cabelo emanava a liberdade que experienciava.
Houve aquela fase em que os brancos ficaram especialmente rebeldes e secos. Na altura, não percebia a mensagem. Era a reação natural do meu cabelo, quando eu me desviava do meu centro. Bem podia usar toneladas de produtos hidratantes, mas era como 'colocar água em balaio furado'.
Recebia tantos julgamentos em forma de recomendação para pintar os meus brancos, pois "não combinavam com a minha jovem idade". Ria-me por dentro.
Bons anos depois, as mesmas recomendações eram transformadas em elogios "adoro os teus brancos, a ti ficam mesmo bem". O ambiente externo recebia a mensagem irradiada pelo meu coração, de aceitação e, por conseguinte, só conseguiam ver a beleza desprovida de padrões impostos. Começaram a captar apenas a essência.
Chegou o momento, mais recentemente, em que as pessoas começaram a ver no meu cabelo, a minha marca.
O meu cabelo comunicava a minha transformação.
A sensibilidade do couro cabeludo representa a sensibilidade do meu Ser.
A conexão entre a raiz do meu cabelo com o meu cérebro é clara.
Os brancos são a fonte de sabedoria Ancestral.
Os caracóis desenvolvem-se em forma de espiral energético.
A forma pouco definida revela a rebeldia e a criatividade.
Os quatro fios que nascem no mesmo poro representam a Abundância.
O percurso com o meu cabelo é parte da minha história, a transformação começou pelo meu cabelo. Sou grata pelos desenvolvimentos desde tenra idade, que me permitiram conhecer e resgatar a minha nagoia.
ability to release talent
E tu? Já fizeste um encontro com o teu cabelo?
Dakar, 30 de Dezembro 2020
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